quarta-feira, 23 de abril de 2008

Uma questão de bom senso (de humor)

- Me chamou?
- “Só chamei, porque te amo...”
- Pô, Pedrão! Já vai começar com pegadinha? Nem vem porque essa eu conheço.
- Todo mundo conhece, Valmir.
- O Gil até que foi bem nessa tradução, mas eu prefiro a versão original. I just call to say... É daquele outro pianista negrão cego, como é o nome mesmo?
- Cego?
Valmir começou a suar frio. Ele sabia das atrocidades que aquele homem sentado ao seu lado era capaz de cometer e agora acabara de cometer ali o terrível pecado de não se lembrar que Pedrão detestava aquele termo, já que sua doce mãezinha não enxergava de um olho por culpa de uma travessura do filho quando era criança, quando o então chamado Pedrinho descobriu que usar água sanitária não era uma boa forma de manter sempre limpos os globos oculares.

- Desculpa – engoliu seco – Deficiente visual. E afro-americano também.
Vai que ele tivesse na família algum parente negro que sofreu alguma discriminação.
- O Ray Charles? – perguntou Pedrão, com um olhar nervoso, quase psicopata.
- Não, aquele outro de cabelo mais compridinho, meio trançado, tá sempre rindo...
- Estevão! – Pedrão agora sorria igual a uma criança, talvez mostrando ser real a lenda de que sofria de um sério distúrbio bipolar.
- Estevão? Quem é Estevão? Só tem eu e você aqui1 Tá maluco?
- Estevão Maravilha!
Pedrão agora parecia eufórico.
- Cacete, Pedrão. Já tá drogado a essa hora da manhã?

Essa segunda indiscrição de Valmir foi o suficiente para o anjo momentâneo novamente se transformar naquele demônio peçonhento. Rangendo os dentes como um pitbull raivoso prestes a destroçar a própria focinheira para desferir o bote mortal, Pedrão agarrou Valmir com força pelo colarinho.
- Escuta aqui, seu merdinha. Em primeiro lugar, nunca me chama de drogado. Nunca nessa vida, apesar de tudo, cheguei perto de nada parecido. E já fiz gente muito mais importante que você passar dessa pra outra por muito menos. Em segundo lugar...

Pedrão soltou o trêmulo Valmir de volta na cadeira e, com a auréola dourada temporária de volta à cabeça e uma expressão serena de fazer inveja a qualquer monge zen-budista, concluiu:
- Em segundo lugar, sua sorte é que hoje eu estou de bom humor.

Valmir ainda observava-o mudo, obrigando Pedrão a ser mais enfático, para não chamá-lo de grosso, outra atribuição que ele recusava com fervor.
- Agora traduz pro inglês, seu estúpido.

Valmir pareceu ainda não entender nada.
- Maravilha quer dizer Wonder... Estevão é como se fosse Steve!

Longo silêncio e mesmo assim Valmir não era capaz de dizer nada.
- Estevão, Steve. Maravilha, Wonder! - declarou Pedrão, estampando um enorme sorriso no rosto, como se aquilo fosse o insight mais inteligente que um humano dotado de inteligência superior seria capaz de ter. Diante da demora na resposta do seu interlocutor, adotou então um tom, se é que era possível, mais ameaçador.
- Entendeu agora ou vou ter que desenhar no guardanapo?
- Steve Wonder! – exclamou Valmir, ainda aturdido pelas metamorfoses instantâneas no humor do homem com quem conversava.
- Só podia ser.
- Que piada sem graça!

O displicente Valmir acabara de cometer outro erro fatal, já que Pedrão se julgava o mais novo e estrondoso talento do humor, praticamente um Jerry Seinfeld brasileiro ou uma versão repaginada do grande Ary Toledo. E ai de quem o contrariasse. Porém, essa Pedrão deixara passar em branco, pelo menos por enquanto.
– A piada foi bem sem graça – continuou Valmir, agora um pouco mais à vontade – mas esse cara é ótimo! Muito bom, muito bom mesmo. Lembra do filme ‘A Dama de Vermelho’, que tinha essa musica como tema?
- Filmão... – confirmou o desconfiado Pedrão.
- Filmaço!

Enquanto Pedrão parecia estabilizar seus níveis neurológicos, Valmir começava a se empolgar.
- Tinha até o loirinho de cabelo encaracolado que era engraçado pracaramba e fez um outro filme com aquele ator negrão igual ao Apollo do Rocky.
- Cegos, surdos e loucos?
- Esse mesmo! Você pode não ter graça nenhuma, Pedrão, mas pelo menos você conhece as coisas boas da vida.

Valmir agora estava tão à vontade que começava a perder a real noção do perigo. Pedrão sabia disso, mas queria saber até onde aquele cretino era capaz de chegar.
- Puta filme, meu amigo! – concordou Pedrão – De chorar de rir.
- Puta filme mesmo. Isso é que é engraçado, não essas, abre aspas, sacadinhas inteligentes, fecha aspas, que você faz.

E não é que aquele lamentável exemplar da humanidade já estava se achando o dono da situação? Pedrão se corroía por dentro, mas ainda assim continuava dando corda:
- Eu sou um sobrevivente. Pena que não se faz mais anos 80 como nos anos 80.
- Pena que não se faz mais negrão cego – pausa – ou melhor, afro-descendente com deficiência visual como o Steve. Nunca mais ouvi falar dele.
- Nunca mais nem vi a cara dele.
- Se isso te servir de consolo, ele também não.

Não! Já não dava mais! Aquilo superava qualquer limite que Pedrão poderia suportar.
- Você fala das minhas piadas – Pedrão bateu forte no balcão – mas essa foi ridícula.

Agora Valmir não apenas deixara de se intimidar como até tratava-o com desdém:
- Piada não. É humor negro. Coisa sofisticada. Com sotaque britânico, inclusive.
- Britânico é o cacete! – Pedrão internamente contava até dez – Humor britânico é mais refinado, tem o timing certo. É só ver os caras do Monty Python, que fazem até pastelão virar coisa de bom gosto. Aliás, você devia era tomar umas aulas com o Tiririca, outro comediante sensacional, diga-se, porque essa bobagem que você acabou de falar é pura maldade, Valmir.
- Maldade é encoxar a mãe no tanque.
- Isso já não é maldade, é ausência total de qualquer noção de respeito e, quiçá, de periculosidade. Mas você tem razão, encoxar a minha mãe ia ser maldade mesmo. Já a mãe dos outros...
- Como assim?
- Eu encoxei a sua mãe no tanque, mas não foi maldade nenhuma. Porque ela adorou.
- Isso é humor refinado? Você acha que essa merda que você falou é humor refinado? – veja só que audácia, Valmir agora queria intimidá-lo – Porque se for começar com sacanagem, dou meia volta e pulo fora dessa. Agora deixa de papo furado e me diz por que você me chamou.
- O negocio é o seguinte... – emendou Pedrão, segurando um falso sorriso.
- Dezenove não é vinte! – completou Valmir – Essa é velha. Já faz tempo que essa ficou velha, hein Pedrão?
- Então ela é nova.
- Como assim?
- Matemática pura, meu amigo. Menos com menos dá mais, certo? Então velha com velha só pode virar piada nova.
- Sei...
- Pode admitir que você achou engraçado, vai. Só tem a gente aqui, ninguém vai saber – e enfiou a mão no bolso sem Valmir perceber.
- Tá vendo eu ali, ó? – indagou Valmir, apontando o emporcalhado assoalho do bar – Tô rolando no chão de tanto rir.

- Pois é, mas agora você vai mesmo rolar no chão...
Mais rápido do que qualquer personagem de Clint Eastwood poderia sequer supor, Pedrão sacou uma sete-meia-cinco com um pequeno silenciador acoplado e disparou uma única vez na garganta de Valmir, que não teve tempo nem de entender a piada antes de desabar morto
– ... e quem vai rir sou eu!

Pedrão levantou-se, limpou cuidadosamente o coldre da arma – mesmo usando luvas de couro, era bom ter o máximo de precaução – e colocou-a nas mãos da sua mais recente vítima. Quando saía do bar vazio, virou-se para trás e contemplou o corpo de Valmir com total desprezo.
- Não suporto gente sem senso de humor.