segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Exagerada? Nem morta!

Aquele homem era mesmo um imprestável. Um verdadeiro estorvo. E pensar que até mesmo depois de morto – ou quase – ele fez questão de acabar com a minha vida.

Quem visse aquele velho homem estirado com as mãos uma sobre a outra que pareciam até tremer de tão rígidas, e a face pálida e enrugada como uma massa disforme de marshmellow congelado, seria incapaz de imaginar que, há menos de vinte anos, ele era um bonitão, um pedaço de mau caminho com pinta de galã de cinema dos tempos áureos. Uma versão mais moderna de Clark Gable, mas sem orelhas de abano e, muito menos, aquele bigodinho que é moda entre office-boys.

Por essa característica, que sempre causava suspiros nas mulheres que cruzavam seu caminho, ele nem precisou gastar sua lábia dissimulada, outra coisa que tinha de sobra, para fazer mamãe quase cair de joelhos aos seus pés de tão apaixonada, e não pensar duas vezes quando resolveu largar papai às traças para fugirem juntos. O mais doloroso, provavelmente, nem fosse o repentino divórcio em si, agora eu vejo bem, mas o fato de eu saber que, enquanto os dois pombinhos viam todas as maravilhas possíveis em sua louca viagem mundo afora, eu via o homem que havia me criado com amor e carinho ficar cada dia mais irritante e com uma melancolia que ia se amplificando em progressão geométrica. Até que um dia, graças a Deus, definhou de tanto desgosto. Ainda bem que nosso mordomo enterrou o pobrezinho antes que eu pudesse morrer de vergonha com aquela cena.

Quando voltaram, mamãe e aquele sujeito encontraram-me órfã, sozinha naquela imensa mansão, já começando a sentir prazer no ofício de mandar e desmandar nas dezenas de criados da família. Ao mesmo tempo em que sentia o poder recém-adquirido ser podado com a chegada daqueles dois, percebia que aquele falso e sem caráter estava fazendo de tudo para conquistar a afeição desta até então ressentida garota. Sorte que esses péssimos sentimentos já ficaram para trás. Porém, mesmo com os incansáveis esforços daquele canalha destruidor de lares, eu jamais cedi. Não teve bicicleta, carro e nem a possibilidade de ter meu próprio jatinho particular que me fizesse recuar. Claro que aceitei os presentes, mas, antes de tudo, sempre fui uma mulher de princípios. E olha que aquela desgraça de ser humano possuía um papo doce capaz de fazer até mesmo a saudosa Cássia Eller querer mudar de time.

Agora lá está ele, vestindo o mais fino paletó de madeira, recheado com flores trazidas dos mais belos e portentosos jardins, mas sem uma alma sequer para chorar pela sua alma miserável naquele enorme salão. Justamente aquele salão que, em época de vacas obesas de tão gordas, vivia lotado com a mais alta grã-finagem da cidade, quase obrigando esta já traumatizada adolescente de outrora a beber escondida para conseguir dormir. Ainda bem que só faço isso hoje por força do hábito...

Ao lado do caixão estava somente mamãe – eu a observava apenas de longe, talvez para não me contaminar com sentimentos negativos. Só que nem mesmo ela era capaz de derramar uma lágrima sequer. Minha progenitora, aliás, estava mais preocupada com o homem do cartório que iria trazer a certidão de óbito que possibilitaria, o mais rápido possível, que pusesse as mãos no seguro de vida daquele senhor desprezível e tão irresponsável que jogou não só toda a sua fortuna, como também a de mamãe – e conseqüentemente, a minha – pela latrina.

Quando amadurecia a idéia de repreendê-la por essa postura tão imoral de pensar apenas no dinheiro enquanto seu finado marido ainda mal começara a gelar, a chegada de um garboso homem, vestindo um terno alinhado que valorizava seus ombros musculosos e uma calça de caimento tão perfeito que tornava possível admirar aquelas suculentas nádegas, fez-me disparar o coração de tal forma que quase tonteei de dor. Resolvi disfarçar uma tristeza, até mesmo um choro. Quem sabe aquela formosura de rapaz viria consolar esta depressiva enteada. Mas não é que a descarada da minha mãe, a minha própria mãe, recebeu-o com um sorriso que ia de uma orelha a outra, fazendo-me morrer de vergonha? Afinal, não era de bom grado uma mulher da sua estirpe se engraçar com outros ainda na presença do corpo do falecido. Foi então que eu descobri que aquele pão era o esperado homem do cartório. Com aquelas mãos enormes, ele enfim entregava-lhe o documento que nos traria de volta alguns dos milhões que aquele facínora torrou.

Agora não venha você querer me culpar por sentir um leve desejo de enviar mamãe ao manicômio, porque assim que o belo gajo abandonou o funesto recinto, ela rapidamente guardou a papelada em uma pasta e, em seguida, inclinou-se junto ao caixão e começou a cochichar alguma coisa, como se aquele velhaco fosse capaz de escutá-la. O cúmulo dos cúmulos foi quando colocou o ouvido sobre o rosto dele, movendo a cabeça como se estivesse concordando com algo que ele lhe dizia, como se morto agora pudesse falar. Não que eu não acredite nessa coisa de espírito, muito pelo contrário, mas aquilo me deixou tão nervosa que meu braço esquerdo adormeceu e senti um intenso desconforto no peito, acompanhado de uma pressão aguda que só os escafandristas são capazes de suportar nas águas mais profundas.

Eu não estava entendendo nada! Ainda mais depois que mamãe foi espiar pela janela e voltou apressada apagando as velas ao redor e dando duas batidinhas na lateral do caixão.

- Levanta, Francisco. Aproveita que não tem ninguém olhando.

Como num passe de mágica, o falso morto ficou sentado no receptáculo de carvalho ornamentado com pedras preciosas e retirou do nariz os algodões que tapavam suas narinas. Quando o agora ex-falecido enfim se levantara, quem caía era eu. Meu pobre e sofrido coração não suportou tamanha corrupção de valores e saiu pela boca, expulsando do meu corpo a minha não menos pobre e sofrida alma.

Pois é. Foi assim que eu morri. E agora, em vez de eu aproveitar com mamãe todas as mordomias que uma pessoa pode ter com os milhões do seguro de vida daquele astuto representante da escória humana, aqueles dois estão fazendo tudo isso e muito mais a bordo de um iate de quarenta e cinco pés com piscina e tudo. Comprado sabe como?

Com o dinheiro do meu seguro de vida, claro.